sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Linha 77

(Tamy F.)

Jack estava sentado no último banco do ônibus que ia de Leesburg rumo á Fawcett City. Olhava para os próprios pés o tempo todo, e não movia sequer os dedos da mão. Estava frio em Leesburg quando ele deixou a estação e subiu cambaleando no ônibus da linha 77. Pisou o primeiro degrau com o pé esquerdo, o segundo, o pé direito levantou do asfalto, tocou o degrau, mais uma vez o pé esquerdo entrou em cena, o terceiro degrau, pronto, Jack estava dentro do ônibus. Logo que entrou, ainda de pé, sentiu o cheiro de suor daqueles trabalhadores que voltavam das fábricas, das fábricas de gente, de mente e de corpo. Pequenos robôs que suavam frio dentro daquele ônibus. Fora os trabalhadores, umas moças de uns vinte e sete anos sentavam perto da janela. Eram três. Duas loiras e uma coreana. Jack disse ao policial em Fawcett City, que as moças cheiravam a açúcar queimado.
Não havia um lugar vago no ônibus. Jack olhou em volta, nada. Ficou alí, parado no meio do assoalho metálico e sujo da linha 77. Quatro minutos, um barulho de tosse veio do fundo do ônibus. Jack olhou. Um andarilho, maltrapilho, sujo e anônimo como um cão atropelado. Jack saiu do lugar onde estava estacionado a quatro minutos, deu um passo, dois, mais um passo, quatro, cinco, outro, sete, o último. Lá estava Jack de pé, em frente ao homem-maltrapilho e sua sacola marrom no banco ao lado. O maltrapilho ergueu os olhos negros e encontrou os azuis de Jack Hassan. A voz do americano, tão maltrapilho e sujo quanto ao próprio maltrapilho que acabara de conhecer, saiu de sua garganta:
- Posso? - disse com o dedo indicador da mão direita apontado para a sacola marrom daquele homem-lixo.
Não ouviu a resposta. O maltrapilho gemia. Jack pegou a sacola, - era leve -, sentou, cruzou as pernas e a sacola veio repousar naqueles ossos compridos cobertos por um jeans surrado. O maltrapilho gemia. Jack tossiu:
- Não se preocupe, sua sacola está bem confortável aqui. - Riu.
O maltrapilho gemia. Jack não desistiu:
- O que tem aqui? É bem leve.
O maltrapilho, entre mais um gemido e uma tosse, respondeu:
- Papéis.
- Papéis? - não podia deixar o maltrapilho se calar de novo.
- Não me ouviu?
- Sim, claro, perfeitamente. Só achei curioso carregar papéis. - Jack engoliu a saliva acumulada na boca.
O maltrapilho calou-se. Jack também.
O ônibus parou, um homem alto e forte subiu. Usava um terno preto, sapatos de couro e uma maleta. O maltrapilho gemia. O homem procurou um lugar vago, nada. Olhou para o fundo do ônibus. Olhou para Jack, depois, para o maltrapilho. Caminhou. Passos largos. O sapato, ''toc toc toc'' no assoalho metálico. O maltrapilho gemia. O homem parou:
- Por favor cavalheiro...
O maltrapilho levantou, arrastou os pés imundos, olhou para a sacola, depois para Jack, gemeu, apertou a campanhia, o ônibus parou, uma última olhada para a sacola, um degrau, dois, três, desceu.
O homem de terno tirou um lenço do bolso, limpou o banco, sentou. Jack olhou para a sacola marrom, dois segundos, abriu. Papeís. Três folhas amareladas. O ônibus freou, Jack derrubou as folhas. Abaixou, e lá de baixo viu todos aqueles homens, mulheres, velhos e crianças olhando para ele. Todos olhando para ele. Todos aqueles homens bem sucedidos, e aquelas mulheres vazias, as crianças mimadas e os velhos fanáticos, olhando para ele. Jack ficou pálido, "eles viram a arma na minha cintura, sim a arma está aparecendo", pensou. Ainda curvado para frente, Jack leu naquelas folhas amareladas, uma frase de Platão, "uma vida não questionada não merece ser vivida". Jack sabia o porquê de estar alí, sabia desde quando entrou naquele ônibus na estação em Leesburg. "Uma vida não questionada não merece ser vivida". Jack levantou, - a essa hora todos aqueles homens-dinheiro, mulheres-dinheiro, crianças-dinheiro e velhos-dinheiro já estavam gritando. Jack pegou a arma, dedo no gatilho, tiros. Não sobrou ninguém no ônibus, os que não foram atingidos, correram. Jack voltou ao fundo do ônibus, sentou. Vinte minutos e a polícia estava lá. Algemas. Câmeras, jornalistas, polícia, políticos, multidão, massa, homogeineidade. Um rebanho de homens e mulheres, - e cabe dizer que todos eles estavam dizendo que a violência que alí acontecera, foi consequência das drogas, do álcool, das armas, daquele jovem maluco -, corriam de um lado para o outro. Jack parou, olhou para o rebanho. Gritou:
- Vocês são rebanhos nessa terra! Todos vocês! Governados, manipulados e cegos! - Jack já estava rouco.
Um policial sacou a arma, "bang!", Jack caiu. Pronto, menos uma voz crítica no mundo da política.
O maltrapilho gemia, do outro lado da rua, sentado na calçada. Gemia, tosse, tosse, gemia. A mão trêmula escrevia sua última frase, "não há nada de errado com aqueles que não gostam de política...", gemia, mais tosses, agora com falta de ar, "... simplismente serão governados por aqueles que gostam". O maltrapilho pôs um ponto final ao texto de quinze linhas que tinha ganhado vida, alí mesmo, na calçada. E como todo ''Final Feliz do Curral Político", a ovelha negra desgarrada do rebanho, morreu.
Jack Hassan, 19 anos, jogador de beisebol nos fins de semana, colecionador de carros antigos e tampas de garrafa; não comia carne, não bebia nem fumava, mas - que estupidez! -, gostava de política.

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