sexta-feira, 4 de junho de 2010

Ví vendo


Hoje faz uma semana.
Hoje faz uma semana desde o dia em que enfiei numa mochila vermelha tudo o que eu precisava pra ficar uns 5 dias na rua.
O 'ficar' na rua é diferente do 'estar' nela. Muitos estão nela de passagem. Os que ficam nela são poucos. Os que ficam nela não têm 4 paredes, nem teto, nem grades. Só o chão. Os que ficam nela têm o chão.
Um chão que treme e se parte a cada passagem de massas e tropas de competidores naturalmente humanos. Naturalmente? Humanos...
Conheci as margens.
As margens.
E ás margens fiquei. E ví.
Ví Josés, Daniels, Nelsons, Tiagos, Danilos, Miguels... e tantos outros que vivem.
Todos muito vivos.
Ficar na rua e estar vivo cabe dentro deles. Coube em mim.
Eu era do tamanho da minha mochila.
Na ruas couberam muitas mochilas, de muitas pessoas, dentro de mim.
Margens.
Flanar pelas margens.
Ás margens.
Verdades.

TF

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Camuflanagem

Tamy Fernandes

Flanar.
Sim, flanar, e com destino ou não, sempre levar na "bagagem biológica" um pouco de paz.
E com ou sem chave, dar um jeito de tirar as correntes dos pés e descalçar-se de todo couro fino e salto alto.
Flanar.
Com o cotidiano, com o vento que vai e vem, com o povo, com o louco, com os poucos, com vinte e poucos ou aos cinquenta, mas flanar, de bengála, de muleta, no asfalto ou á beira mar.
Flanar na rua, bem crua, nua, suja.
Vestir um pano leve, esqueçer o 'volto em breve' e escorregar o pé no asfalto.
Sentir bem lá do alto uma fumaça de óleo diesel entrar pela cuca, descer a garganta e voltar em forma de fuga.
E flanar todo dia, mesmo com a correria, larga a louça na pia e pisa com calma que tudo esfria.
Flanar, pra cá, pra lá, sem se preocupar se o dinheiro dá.
Ouvir o som da buzina bem perto do ouvido e ficar quase surdo de tanto gemido de fome, de dor, de revolta. É gente batendo na porta pra vender revista, é gente dormindo na porta pra fugir de polícia, é gente que bate a porta na cára de quem necessita. E quem recita um verso camarada, como é que fica?
Se fica, eu nem sei.
Mas pra quem não se alimenta da lei... "Vâmo flanar pra caramba!Que um dia esse povo bamba vai fazer tudo girar!".

domingo, 2 de maio de 2010

Tarkovski


Éramos conduzidos, sem saber para onde;
Como miragens, diante de nós recuavam
Cidades construídas por milagre,
Havia hortelã silvestre sob nossos pés,
Pássaros faziam a mesma rota que nós,
E no rio peixes nadavam correnteza acima,
E o céu se desenrolava diante de nossos olhos.

Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

"Arde-Arte"

Tamy Fernandes


Hoje eu sou a arte, a música e a mágica ressaca dos bêbados do centro da cidade.
Só por hoje eu sou, por vontade de ambas, a palavra e a imagem.
Hoje eu legalizo a liberdade e, indistintamente, sou álcool e fumaça.
Hoje eu censuro qualquer zumbido de máquina e qualquer barulho.
Só por hoje o almoço é de graça.
Hoje não aceito raças, carcaças, migalhas, desgraças.
Hoje a bala do revólver não mata.
Só por hoje eu tenho o dom da palavra.
Hoje a política não me maltrata.
Só por hoje eu sou todos de uma só vez.
Hoje sou patrão e não freguês.
Hoje não me chamo José, mas Senhor Burguês.
Hoje soy latino e não babo inglês.
Só por hoje eu canto a bola da vez.
Só por hoje.
E nunca mais talvez.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Página nada

Tamy Fernandes

Página 1. E por onde começar?
Começo falando dos que sentem fome ou dos que sentem frio? Dos que não ouvem ou dos que não falam? Daqueles que tocam ou daqueles que cantam? Ou falo de todos eles que, na verdade, são um só?
Começo entregando 1 real ao pedinte da esquina ou poupando-o ao lavador de vidros do semáforo seguinte? Compro um doce do gurizinho descalço ou um sorvete para o de 3 anos sentado na calçada? Abraço o que chora ou o que grita? Ouço o lamento ou o protesto?
Defendo quem? E para quê? Deixo que me leiam ou leio de uma vez todos eles?
A insônia é de quem? Do que nunca dorme ou do que nunca acorda?
Falo com quem? Com os de terno preto ou com os rasgados da ponte?
Assisto a Copa, a política ou o Tsunami? Ou me calo de uma vez e deixo passar?
Passar todos os que sofrem da arte, da fome e do frio, bem na minha frente.
Passar todos eles para a página 2. Puxá-los mais tarde á página 1. E por fim, ao fim que é deles e de mais ninguém, deixá-los ir para casa, de madeira, de barro, de plástico, de ponte, de viaduto, de calçada e de lata, de página nada.

sábado, 2 de janeiro de 2010

As cidades invisíveis

Aos que acharam que esse Blog já estava juntando teia de aranha, aqui está o texto - maravilhoso -, de Caio Leonardo:

"Que cidade é esta, em que tantos vivem, mas que só você vive, que só você vê?
É sua a cidade dos que olham para cima? É sua a cidade dos que olham para o chão, para as calçadas, para os degraus?
Ou a cidade dos que não olham, dos que não vêem?
A sua é a cidade em que a barriga pesa até libertar uma nova vida, ou aquela em que não se pode falar em barriga?
Conte como é a cidade dos que se doem de amor e a das para quem o ato de amar dói.
Vamos ler a cidade dos que ouvem outros sons e dos que não ouvem som algum. A dos que tocam sons que não se ouve e a dos que não emitem sons.
Como é a sua cidade, se sua cidade é sua cor?
Como é sua cidade, encoberta pelo olhar viciado do quotidiano, escondida pela indiferença ou apenas tímida, recôndita: cidade invisível."

Por Caio Leonardo.